Segundo uma reportagem do jornal The Atlantic, o governo de Donald Trump ordenou a destruição de quase 500 toneladas de alimentos que estavam destinados a pessoas em situação de emergência. Parte desses alimentos, principalmente biscoitos, será incinerada ou encaminhada a aterros nos Emirados Árabes Unidos. De acordo com a agência Reuters, essa operação custará aos cofres públicos dos Estados Unidos cerca de US$ 100 mil.
A decisão ocorre após o congelamento da ajuda humanitária determinado por Trump no início de seu atual mandato. Como resultado, cerca de 1.100 toneladas de alimentos estocados em um armazém em Dubai correm o risco de perder a validade antes de serem utilizadas.
Diante da iminência de prejuízos e críticas por desperdício de recursos públicos, uma autoridade americana autorizou o aproveitamento de parte dos estoques. Com isso, 622 toneladas de biscoitos foram resgatadas. No entanto, os documentos internos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), datados de maio, revelam que outras 496 toneladas, avaliadas em US$ 793 mil, serão inutilizadas.
Os impactos da decisão vão além do prejuízo financeiro. Um funcionário da Usaid, citado pela Atlantic, estimou que os biscoitos descartados poderiam alimentar, durante uma semana, todas as crianças em situação de insegurança alimentar aguda na Faixa de Gaza.
Esse episódio escancara o colapso das operações humanitárias americanas, que enfrentam atrasos, desperdícios e cortes de pessoal desde que o governo Trump congelou recursos e demitiu milhares de funcionários contratados pela Usaid.
Um porta-voz do Departamento de Estado, órgão que atualmente responde pela ajuda humanitária dos EUA, confirmou à agência Reuters, por e-mail, que os biscoitos estocados em Dubai terão de ser destruídos. De acordo com ele, os alimentos foram adquiridos como medida de contingência, “além das projeções”, ainda durante o governo do ex-presidente Joe Biden.
A atual administração de Donald Trump justifica a interrupção da assistência internacional com base no argumento de que os Estados Unidos arcam com uma parcela excessiva desse tipo de ajuda. Para o republicano, outras nações deveriam compartilhar a responsabilidade pelo apoio humanitário global.
Ainda em janeiro, o governo Trump anunciou planos para desativar a Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), o que deixou mais de 60 mil toneladas de alimentos paradas em armazéns espalhados pelo mundo. Desde então, servidores públicos têm solicitado, sem sucesso, que a nova liderança da agência autorize a distribuição dos itens antes que expirem.
Os biscoitos armazenados em Dubai são do tipo enriquecido com alto teor calórico e têm como público-alvo populações em crise que não têm acesso a cozinhas ou utensílios para preparar refeições. Segundo o Programa Mundial de Alimentos (WFP), da ONU, esse tipo de alimento é fundamental para fornecer nutrição imediata a crianças e adultos em áreas afetadas por emergências.
Dados do WFP revelam a gravidade da situação: cerca de 319 milhões de pessoas em todo o planeta enfrentam níveis agudos de insegurança alimentar, sendo que 1,9 milhão está em situação de fome catastrófica, especialmente em regiões como Gaza e Sudão, onde a inanição ameaça a sobrevivência de milhares.
Após a nomeação de Jeremy Lewin e Kenneth Jackson como administradores interinos da Usaid, vinculados inicialmente ao Departamento de Eficiência Governamental (Doge), houve o encerramento de programas de segurança alimentar. De acordo com fontes próximas às discussões, funcionários também teriam sido instruídos a não dialogar com organizações que requisitavam os biscoitos estocados.
Em contrapartida, um funcionário do Departamento de Estado, que falou sob condição de anonimato, negou essa alegação. Segundo ele, é “totalmente falsa” a informação de que a equipe da Usaid foi impedida de se comunicar com entidades humanitárias.
Durante audiência no Congresso dos EUA, em 21 de maio, o secretário de Estado Marco Rubio garantiu que nenhum alimento seria descartado. Ele afirmou que Lewin havia firmado um acordo com a Usaid para transferir 622 toneladas de biscoitos ao Programa Mundial de Alimentos (WFP), antes do vencimento dos produtos em setembro.
No entanto, documentos internos e declarações de cinco autoridades envolvidas indicam que, à época da fala de Rubio, a ordem de destruição já havia sido emitida. O memorando de 19 de maio revela que o acordo só foi formalizado em junho, após semanas de espera, causadas pela demora de Lewin em responder às tratativas.
Diante da inércia, servidores da Usaid alertaram em um comunicado que a validade dos biscoitos estava se esgotando e que a destruição custaria cerca de US$ 125 mil aos cofres públicos. Após o alerta, Lewin finalmente assinou o acordo, possibilitando o reaproveitamento das 622 toneladas de biscoitos — avaliadas em quase US$ 1 milhão — que agora serão enviadas à Síria, Bangladesh e Mianmar.
Lewin preferiu não se pronunciar quando procurado pela Reuters, e o Departamento de Estado também evitou comentar as alegações de atraso nas decisões. A ausência de resposta alimenta as críticas em torno da condução da crise envolvendo a destruição de alimentos humanitários.
De acordo com cálculos feitos pela Reuters, com base em dados do Programa Mundial de Alimentos (WFP), as 496 toneladas de biscoitos que serão incineradas poderiam suprir a alimentação de aproximadamente 27 mil pessoas por um mês. A carga, inicialmente, seria encaminhada a parceiros da Usaid no Afeganistão e no Paquistão.
Embora os Estados Unidos sejam reconhecidos como o maior doador de ajuda humanitária do planeta — com 38% das contribuições totais registradas pela ONU —, os recentes episódios levantam dúvidas sobre a gestão desse apoio. Em 2023, o país destinou US$ 61 bilhões à assistência externa, sendo mais da metade desse valor executada por meio da Usaid.
Em março deste ano, o governo Trump notificou o Congresso sobre o plano de demissão em massa na Usaid. A decisão prevê cortes quase totais no quadro de funcionários da agência em duas etapas: 1º de julho e 2 de setembro, em preparação para o fechamento da instituição.
A mudança de postura ficou clara em declaração feita por Marco Rubio em 1º de julho, data que marcou oficialmente a incorporação da Usaid ao Departamento de Estado. Segundo ele, os EUA deixarão de atuar com foco em caridade e passarão a investir na capacitação de países para o crescimento sustentável.